A vida está em outro tempo
















Por que razão uma mulher como eu tem um lençol estampado com pássaros?, foi o pensamento que tirou Joana da cama pela manhã. Lembrou que Izabel não iria. Vestiu o roupão, que lembrava um quimono, e andou até a cozinha para fazer o café. Não gostou do cheiro do pó. E era pelo cheiro que reconhecia um bom café, arábica, produzido na região da Alta Mogiana em São Paulo ou no Sul de Minas. Além desses, talvez os colombianos, desde que viessem adequadamente embalados, senão perderiam suas qualidades no transporte.

Bebeu o café observando as montanhas. Pareciam difusas, enevoadas. Mas é inverno e seco, não há neblina nessa época... Eram bonitas, ainda assim, mas essas não eram as suas montanhas. Um bem-te-vi cantava insistente, um canto que chegava de longe. Demorou a distingui-lo entre os ruídos da rua, e entre um pio e outro, era um canto de quero-quero que ecoava em seus ouvidos. Não tem quero-quero por aqui... Deve ser um toque de celular. O mau gosto corrente o autorizaria.

Revisou mentalmente o dia anterior: a reunião com a ONG empenhada na preservação das montanhas de minério de ferro, foi positiva. “Por que se empenha tanto na conservação dessas montanhas mortas?”, perguntou um representante das mineradoras presente. Respondeu qualquer coisa, mas de fato não sabia a razão.

Detestava essas reuniões. Sentia-se deslocada nelas. Tinha sempre a sensação de que a convidavam  por conta do peso do nome de sua família, e mal ouviam seus argumentos. Não que a achassem estúpida, talvez apenas acreditassem que seus pensamentos e reflexões não fossem autônomos. O que não era totalmente mentira... Sonhava que um dia pudesse ser despida do seu nome e suas seguranças e jogada na vida nua, sem outras armas que não sua mente e seu corpo. E sonhava tão intensamente que talvez fosse lembrança. Lembrava do cheiro da liberdade. Liberdade que cheira a capim molhado e arranha a pele.

Tomou o resto de café da xícara, que já estava frio. Como não haveria almoço em casa, vestiu-se e saiu para encontrar uma amiga. Iriam conhecer um novo restaurante, inaugurado há poucos dias. Demorou a encontrar o endereço, os nomes das ruas nas placas pareciam embaçados, não os reconhecia. Essa sensação de que a vida está em outro lugar...

Deixou o carro com o manobrista do outro lado da rua, esperou o sinal abrir e desceu da calçada para a rua. Quando levantou a cabeça, encontrou o olhar. Entrou. Estava no universo do outro, a vida suspensa, o silêncio, a busca. Encontro. Lembranças que não eram suas, mas as reconhecia. As montanhas, aquelas! eram as suas montanhas. Conhecia a varanda azul e a cadeira vazia balançando ao fundo, o quero-quero no gramado avisando que chegou alguém, o cheiro do capim molhado... Dois passos depois, terminou a travessia da rua. Não se virou para observar de quem era o olhar que havia cruzado.

Flutuou pelo resto da tarde, voltou para casa e deitou-se logo. "Amanhã colocarei um anúncio no jornal: procuro um olhar entre cinco milhões de olhares”. Adormeceu.

Adoro esse lençol de fadinhas!, foi a primeira coisa que Joana pensou ao acordar. Abriu a janela sem descer da cama. Gostava de ver as montanhas verdes, que chamava de suas, pela manhã. Nos dias de chuva no inverno, cobertas de neblina, davam um pouco de medo, ondulavam como uma serpente fantasma quando o vento soprava. Levantou e atravessou a sala correndo. Sentia cheiro do café que a mãe fazia na cozinha. Queria contar a ela o sonho...

Este conto foi baseado no registro de um diário (apenas um dia). Proposto como exercício de uma aula de literatura do curso Processos Criativos em Palavra e Imagem, da PUC Minas.


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